Já perdi as contas de quantas vezes por dia ela reza o tal do terço, até outro dia descobrir, que ela pula as bolinhas disfarçadamente de duas em duas, de três em três, na malandragem, para acabar mais depressa.
Ela sempre foi brava, sempre aparecia na hora exata em que eu executava um plano maligno. Eu amava ir pra casa dela, adorava roubar as laranjinhas que ela fazia para vender, sempre duvidava que ela fosse sentir falta, mas não é que ela contava uma por uma?
Agora, ela também já não ouve muito bem, na verdade, eu desconfio que ela tem uma espécie de audição seletiva; ouve só o que realmente lhe interessa. Heim???
Dorme sentada, agente fala; "vó, vai deitar na cama!" ela diz, "não tô durmindo, só tô descansando os olhos".
A memória também já falha, troca os nomes dos netos, esquece que almoçou, muitas vezes nos divertimos com as confusões que ela faz.
Também tive outra vó, esta já falecida, era menos puritana que a outra.
Quando eu era criança aprontava atrocidades e corria pra me esconder atrás dela, e ela mesmo depois de tanto me advertir que Deus não gosta de mentira, mentia sem pudor para me defender; colocava a culpa da "arte" no cachorro, no vizinho, ou assumia tudo. Soltava sempre aquela famosa frase de vó; "tadinha, ela é pequena!"
Quando meu pai me obrigava a comer verduras e legumes e eu sofria horas intermináveis, ela dava um jeito de raptar tudo do meu prato e comia ou jogava num vasinho de planta mais próximo.. Ela era a mais engraçada das vovós. Sempre ficava doente e sempre sabia de uma garrafada boa para o mal, uma raiz qualquer curtida no vinho branco, então se curava da doença e ficava tonta ao mesmo tempo.
Ela achava nojento beijo de língua, mas teve 12 filhos, um atrás do outro. rsrsrs (sem beijar?).
Quando começava a perder o controle dos netos, ela reunia todos e contava histórias de terror, até agente ficar tão apavorado, que não desgrudava dela, a seguíamos pela casa toda, agarrados na barra da saia.
Tem coisas que tem cara de vó, comida de vó; biscoito frito, pão de queijo....
Cheiro de vó, uma vó tinha perfume de alfazema, a outra cheirava a leite de rosas.
As duas ficavam horas contando histórias de quando o mundo era menos violento, a palavra dos homens tinha valor, as moças eram mais recatadas, a vida era mais dura, mas, dava saudade.
Eu ouvia aquilo e tinha certeza absoluta, que preferia o mundo moderno de agora, mas, nem falava nada, melhor não interromper a nostalgia.
Ah, mas agora é que vem o troco. Eu mesma já envelheci para as crianças de hoje, a fita cassete, o vinil, o disquete, a datilografia, a tabuada, os desenhos e os programas que assistia, as músicas, as roupas, as gírias que estavam na moda...
Como vou explicar tudo isso?
Eles dirão de mim...coisas de vó!
Enquanto esse dia não chegar, melhor me atualizar num up-grade contínuo para não ser ultrapassada pela nova geração, melhor não confessar as antiguidades da minha infância, se eles não souberem, não poderão usá-las contra mim. E que o Renew me ajude a me camuflar entre os jovens por mais alguns anos.
Ai que medo........
Kelly Rodrigues.
Kelly Rodrigues.